Vamos falar de Thelema… de um jeito diferente

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Ok. Vamos falar de Thelema. Mas desta vez não vamos citar Crowley, não vamos discutir Cabalá, não vamos falar sobre magia, ocultismo, nada disso. Vamos falar de Thelema por uma outra abordagem. Uma abordagem que está além das portas de nossos templos ou dos limites de nossos círculos. Vamos falar sobre Thelema naqueles aspectos do mundo — sim, exatamente esse mundo mundano — que muitas vezes gostamos de desprezar.

E vamos falar de você no meio dele.

Sim, de você. Tendemos a nos ver como umas entidades muito estranhas, daquelas que estão bastante separadas do resto do mundo. Seja por nos acharmos superiores, não precisando de nada e nem de ninguém, seja por nos acharmos por demais deslocados do “sistema” para termos de interagir com ele. Bem, tenho uma novidade para você. A não ser que seja uma daquelas pessoas que vivem no meio do mato, plantando e caçando sua própria comida, construindo com palha e barro fofo seus utensílios e gritando obscenidades para qualquer outro ser humano que se aproxima à distância visual de você, você vive em uma sociedade. E, convenhamos, se você está lendo isso, a possibilidade de você ser essa pessoa acima descrita é consideravelmente baixa.

Todos nós dependemos de uma rede se suporte para viver. Seja suporte financeiro (sim, o seu chefe ou seus clientes), emocional (você sabe o que são amigos, não?) ou mesmo vital (médicos, farmácias etc.), todos precisamos de algum tipo de apoio em quase todas as áreas de nossa vida. Por que isso? Simples, porque somos seres humanos. Homo Sapiens Sapiens. E, como tais, evoluímos para existir em sociedade, grupos de indivíduos que, coletivamente, conseguem realizar o que um sozinho não seria capaz. Claro, não chegamos ao nível de uma colmeia ou de um formigueiro mas ainda assim, somos evolutivamente dependentes dessa organização social. É bom ir se acostumando a essa ideia. Simplesmente, por mais que queiramos, não podemos nos retirar dessa tapeçaria de interações sociais, familiares, afetivas, profissionais ou mesmo de proximidade. Está em nosso DNA, não sobreviveríamos a um isolamento contínuo. E não pense que ficar no seu quarto sem falar com ninguém vai te livrar disso. No momento em que pegar um tomate na cozinha para comer, você já estará de volta nessa rede.

Posto isto, o que diabos tem Thelema a ver com esse tipo de coisa? Afinal, Thelema é uma forma de pensar ou uma religiosidade ou ambos ou nenhuma que fala do indivíduo, não é? Que nos mostra que devemos buscar e realizar nossa Verdadeira Vontade, nossa Grande Obra, nos tornarmos Reis e por aí vai. Não é?

Sim. É.

Mas, e isso pode parecer uma surpresa para muita gente, Thelema não fala do seu umbigo apenas. Thelema fala do outro (“tu”, não “eu”) e sua liberdade de ação (“faze”, não “fica aí de boas pensando em”). Thelema fala também da sua responsabilidade para com quem está aí ao seu lado. Certo, vamos citar um pouquinho de Crowley. Mas especificamente, um trechinho de seu texto Dever: “Uni-vos apaixonadamente com todas as outras formas de consciência, assim destruindo a sensação de separação do Todo, e criando um novo patamar no Universo a partir do qual possa medi-lo”. Ou seja, o que ele estava colocando aqui é uma chamada para que você se lembre de que possui deveres para com o resto da humanidade (no texto, deveres também com o mundo como um todo, incluindo a boa e velha Mãe Natureza) e o principal desses deveres é justamente a propagação da Lei de Thelema. Ou seja, se você bate no peito e se diz Thelemita, de carteirinha com foto e tudo o mais, você está aceitando esses deveres.

E o principal deles é o estabelecimento de Thelema no mundo. Certo?

Certo. Mas considere o seguinte: Thelema, em resumo, é a capacidade de cada Homem e cada Mulher ser livre para descobrir e realizar sua Vontade. Então pense o seguinte: qual será que vai ser a possibilidade daquela criança que vive nos lixões de chegar a isso? Será que uma pessoa faminta vai ser livre? Será que a miséria, a condição mínima (ou menos) de sobrevivência permite que alguém chegue à realização da Verdadeira Vontade? Posso, claro, estar enganado mas me parece que a resposta é um sonoro não.

Mas você pode estar perguntando o que é que isso tem a ver com as criancinhas famélicas no Afeganistão meridional? É para mandar dinheiro para o Médicos Sem Fronteiras? Doar sangue a cada dois meses?

Calma. Ninguém aqui, por mais poderoso — em qualquer sentido que esta palavra possa ter — está sendo chamado para salvar o mundo. Também não é essa ideia. A questão aqui é uma reflexão simples. A ideia de que enquanto uma única pessoa não for livre, ninguém será livre em sua totalidade. E se não tivermos um mínimo compromisso com a liberdade alheia jamais seremos, nós mesmos, livres. Pois até ao escravo deve ser permitida a escolha em ser escravo. Que dirá aos Reis e Rainhas.

E, claro, é muito fácil lutar por esse tipo de liberdade fazendo textão nas redes sociais ou metralhando memes para todo canto. O bom e velho “sofátivismo”. Cá entre nós, não vou dizer que não tem lá seu valor e pode até, dependendo do caso, ajudar. Mas, na prática, o que você está fazendo pela liberdade do outro? Não de forma abstrata, não pensando em liberdade como algo meio fantasioso mas como a simples capacidade de olhar para si mesmo e perceber que se pode ir além daquilo que se é agora, além do estágio de simples sobrevivência. O que você está fazendo para impedir que uma mulher seja calada em suas reivindicações por justiça? O que você está fazendo para que um homossexual tenha a liberdade de ser publicamente quem é? O que você está fazendo para que um negro não seja visto como um escravo em uma sociedade de brancos? O que você está fazendo para que um favelado olhe para si mesmo e enxergue alguém que não precisa recorrer ao crime e à violência apenas para conseguir viver mais um ano? Ou um dia?

Não há resposta certa para isso. Não há fórmulas ou receitas que nos tragam um caminho para solucionar esse problema. E, certamente, não exitem ritos ou fórmulas mágicas também.

Mas, se muitas vezes as ações podem ser grandiosas e belas, como a dos voluntários que se deslocam em suas vidas para levar um pouco de conforto e saúde aos necessitados ou tentar melhorar na prática as condições de vida dos que estão vivendo abaixo mesmo da miséria, muitas vezes outras ações também são efetivas. Coisas simples, como não olhar com nojo para o favelado. Não desprezar alguém por não ter o mesmo estilo de vida que você. Apoiar uma mulher que teve seus direitos violados. Ter uma posição fraterna mesmo com aqueles que você não chamaria de Frateres ou Sorores, que olhará a si mesmo não como um dejeto da sociedade mas como um Ser Humano. Pequenos gestos podem ter tanto poder quanto grandes obras.

Isso é Thelema. Isto é o estabelecimento de uma sociedade embasada nos pilares da Lei, do Amor, da Luz e da Liberdade. Para todos, não apenas para você.


Autor: Frater Inanis
Capa: Os Retirantes, de Cândido Portinari

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