O (O)culto Feminino

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As histórias das ordens ocultistas e religiosas no ocidente marcam momentos significativos desta ou daquela escola de mistérios, grupos de fiéis irmãos, iniciados reconhecidos como iguais, no direito de compartilhar experiências secretas mágico-religiosas proibidas aos homens e mulheres desprovidos da sutil capacidade de compreender os mistérios entre o Céu e a Terra.

Se por um lado os homens (que ostentavam algum poder aquisitivo ou prestígio) possuíam cadeira cativa nesse processo gregário chamado ocultismo, as mulheres, por outro lado, foram deixadas como coadjuvantes anônimas da história. Parte da culpa deve-se aos rumos do cristianismo europeu, onde a criação das ordens Segunda ou ordens femininas dentro do catolicismo, pouco ou nenhuma expressão trouxe ao desenvolvimento da teologia e liturgia cristã, lugar esse atribuído aos homens da fé, que devotavam sua castidade em oferta a Deus e a Igreja. A missão de uma ordem Segunda era determinada pelo seu tamanho e pelo(a) santo(a) de devoção. Assim, a missão hospitalar, monástica, educacional e catequização foram algumas das práticas realizadas por tais mulheres em conventos, abadias ou comunidades católicas.

O protestantismo não trouxe maiores mudanças ao lado feminino da balança. Com exceção das rainhas britânicas Elizabeth I e Vitória, o desempenho social e religioso das mulheres era parco, alegoricamente presas na visão fundamentalista da mulher educada para seu marido ou, em contrapartida, daquela que trazia o pecado carnal e a desgraça (financeira, principalmente). A responsável pela queda do Homem daquele paraíso primordial ou verdadeira desmoralização social, exemplificado nas pinturas do holandês Vermeer von Delft.

O panorama social não mudou muito até a 2ª Revolução Industrial inglesa e, posteriormente, francesa, quando mulheres desempenhavam (por baixos salários) atividades antes masculinizadas, além do desenvolvimento dos transportes ferroviários e náuticos, permitindo as trocas comerciais favoráveis aos países capitalistas e as culturais, surgindo um indústria cultural de olho na mulher consumidora. O papel da mulher na sociedade industrial foi crescendo paulatinamente, em sociedades conflituosas com tais mudanças. A expansão inglesa e francesa reabriu caminho para o diálogo oriente-ocidente, sendo a primeira comparada a uma “senhora elegante, sábia e perigosamente misteriosa”.

O oriente precisava ser domado, destrinchado e reordenado pela cultura ocidental, a sociedade patriarcal cristã era o parâmetro para essa ordenação. Muitos curiosos, pesquisadores antropológicos, etnógrafos ou mesmo bon vivants partiam para a ásia à procura de expansão de mercado, além de mistérios alquímicos contados em lendas hindus e chinesas, a austeridade budista e o ópio. O expansionismo trouxe ao europeu o dilema de que era possível o desenvolvimento cultural por caminhos diferentes da história européia e, num dado momento, era possível lucrar com o exótico oriente.

Por outro lado, três pensadores modernos questionaram os alicerces da sociedade moderna com a veemência revolucionária que faltava aos descontentes: primeiro, Karl Marx e sua crítica histórica a sociedade fundamentada no capital; Sigmund Freud, com sua análise do Homem através do campo psicanalítico, abrindo caminho para o estudo do inconsciente como ciência médica, e Friedrich Nietzsche e sua filosofia que rompe com a tradição socrática do Homem em relação à Verdade como sinônimo de realidade.

A Hermetic Order of Golden Dawn, fundada em 1888 por MacGregor Matters, Willian R. Roodman e Wynn Westcott, reatava, inicialmente na Inglaterra, as inspirações de uma sociedade evolutiva através do conhecimento iniciático da antiguidade. Passaram por lá os célebres ocultistas Whaite, Aleister Crowley e Dion Fortune (Violet Mary Firth), essa última líder da Society of the Inner Ligth, também autora de vários livros sobre o assunto.

As transformações sofridas pelas tensões na Europa na modernidade trouxeram uma outra, nossa contemporaneidade, cuja abertura das portas para a participação da mulher na vida pública se fizeram necessárias, passando ela a exercer assim, maior atividade econômica, cultural e ocultista.

Hoje, as sociedades Rosa Cruz, inspiradas nos princípios originais do século XVII até os dias atuais, possuem em seu corpo de membros mulheres atuantes em seus papéis iniciáticos; já a Maçonaria, abre um tímido espaço para as Maçonarias Mistas, de caráter irregular (uma tendência não generalizada, porém um fato no século XXI).

O Caminho do Feminino como Ciência Ocultista

O desejo de ruptura da sociedade cristã e seus valores patriarcais encontrou eco em muitas correntes do pensamento europeu a partir do séc. XIX. Ansiava-se descobrir as origens do problema metafísico, redescobrir outras possibilidades não continuadas pela sociedade patriarcal da religião cristã, insurgindo assim muitas teorias em defesa de um passado matriarcal e sua problematização no contexto da época. Para isso, muitas correntes ocultistas retornavam ao mistérios do passado (mesmo não sendo) para instaurar uma tradição sólida e legitimada pela (estrábica) história. Foi assim com o neo-druidismo, o ocultismo egípcio e muitas tradições cabalistas e gnosticistas atribuídas a mestres ancestrais anteriores ao cristianismo. O passado poderia trazer força ao escopo de uma tradição, melhor ainda se este passado remontasse épocas imemoriais, anteriores a escrita.

(…) um novo matriarcado se anuncia (…) Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud — a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama

(Oswald de Andrade, in Manifesto Antropofágico)

Wicca e o Duoteismo versus Monoteísmo

Gerald Gardner nasceu em Liverpool de 1883, foi funcionário da corte inglesa e viajou o mundo recolhendo informações que alimentassem sua paixão desde épocas mais joviais: o ocultismo. Consta que Gardner iniciou-se em algumas ordens conhecidas como a Maçonaria (no Ceilão), a ordem Rosa Cruz, a Golden Dawn e a O.T.O. de Aleister Crowley. Foi também membro da English Folclore Society, instituição presidida por sir Charles Godfrey Leland, renomado folclorista inglês a quem se atribui influência nos trabalhos de Gardner.

Inquieto com sua aposentadoria prematura, Gardner passou a pesquisar aquilo que ele viria chamar de tradição da bruxaria britânica, oriunda nos celtas e preservada até os anos modernos. Essa teoria era de total desconhecimento e descrédito para a English Folclore Society, mesmo aceitando que a cultura pagã encontrara novos meios de conviver com o cristianismo, escamoteando-se em práticas familiares atemporais.

Já nos anos de 1950, o autor publica o livro Witchcraft Today (Bruxaria Hoje), sucedendo seu livro High Magic´s Aid (Ajuda da Alta Magia), um romance esotérico, segundo os próprios termos. As afirmações de que uma tradição duoteista (onde uma deusa feminina dividia seu culto com um deus masculino) preservada dos embates com o cristianismo, assim como segredos iniciáticos e ritualísticos contidos num misterioso grimório chamado de Book Of Shadows (Livro das Sombras), contribuíram no século XX para o estabelecimento de caminhos espirituais neo-pagãos da Wicca (termo inaugurado por Gardner), somado ao revival do Xamanismo, do Druidismo e da Stregheria. Práticas que se voltavam ao ciclo da natureza, alegorias alquímico-sexuais do encontro do princípio feminino (A Grande Mãe) com o masculino (o deus cornucópio) caracterizam a Wicca como fenômeno ecológico, onde o papel desempenhado pelo humano é de co-participante dos mistérios da Mãe Terra (Gaya), e animista, onde os espíritos e deuses deste sistema fazem parte do reconhecimento das forças envolvidas e figuradas no que se refere a Natureza, onde o bruxo ou a bruxa desempenha a manutenção dessas forças.

Na geração 60, com a crise do pós-guerra e uma Europa devastada, a América do Norte ganhou destaque junto ao fenômeno cultural e ocultista: a tradição européia foi exportada para o novo mundo. O feminismo crescente torneou a crise e eclipsou o caráter duoteista da wicca, excluindo de seus ritos e de sua convivência mágica qualquer presença masculina fosse simbólica ou mesmo literal, como acontecera na tradição Diânica, encabeçada por Zsuzannah Budapest. O papel nacional também modificou os ramos da Wicca, passando a adquirir fenômenos locais de um panteísmo nórdico, em algumas tradições.

Atualmente, a palavra “wicca” tem sido associada a jovens adolescentes atraídos pelo ocultismo da contracultura neo-pagã, crescendo como religião e sendo estetizada em toda mídia de propaganda (cinema, programa de tevê, música e Internet).

Mme. Blavatsky e o Poder do Oriente

Nascida em Ekaterinoslav (atual Dnepropetrovsk), Ucrânia, em 1831, filha de militar e de escritora, Helena Blavatsky foi casada duas vezes, viajou pelo mundo e conheceu desde as peculiaridades dos monges budistas tibetanos até o cosmopolitismo crescente das cidades industrializadas do ocidente. Residiu em Nova York entre 1873 a 1878 (menos opulenta que Paris na época, mas em franca expansão comercial), vindo a morrer em Londres, em 1891.

Fundou junto a Henry Steel Olcott e William Quan Judge (entre outros) a Sociedade Teosófica, cujas nítidas influências encontram-se no hinduismo e no budismo. Blavatsky dizia ter recebido conhecimento dos mestres secretos da Antiga Fraternidade Branca que lhe revelaram os alicerces da “Doutrina Secreta” e advertia sobre os perigos encontrados na prática do “Tantra Yoga”. Essa é uma passagem polêmica da vida desta personagem, sendo relida por pesquisadores da Teosofia que, com senso crítico até onde é conveniente, ameniza ou anistia os excessos da mística ucraniana do século XIX.

Suas pesquisas, polêmicas ou não, tornaram-se legado para o que hoje é comum chamarmos de “Nova Era”, trazendo consigo o ímpeto pelo orientalismo mistificador opondo-se claramente à tradição esotérica européia, tendo em vista os planos que esta possuía para o futuro da Sociedade Teosófica. A participação de ambos os sexos era vista como processo natural do trabalho teosófico, mesmo sobre duras críticas direcionadas a uma líder espiritual mulher no século XIX. Tais divergências não impediram que as demais ordens como a Maçonaria, ordens Rosa Cruz entre outras adaptassem sua doutrina para o escopo de suas tradições.

Publicou os livros “Isis sem Véu” e “A Doutrina Oculta”, entre outros (fontes indispensáveis para o estudo da Teosofia). Aleister Crowley possuía uma notável admiração por Blavatsky, sublinhando sua importância para as Ciências Ocultas com o título de “Mestre do Templo” (8º=3, no sistema da Astrum Argentum).

A sociedade teosófica abriu campo para alguns célebres personagens engajados em causas dos direitos humanos e na luta pela qualidade de vida sobre a Terra, como foi o caso da inglesa Anna Bonus Kingsford, uma das primeiras inglesas cientista no campo da física (depois de Elizabeth Garrett Anderson), membro fundadora e presidente em 1883 da Sociedade Teosófica no Reino Unido. Suas experiências místicas foram postumamente publicadas no livro Clothed with the Sun, organizado por Edward Maitland.

Mulheres Escarlates — Uma breve história do feminino em Thelema

Se por um lado a história de Thelema se deva em grande parte à presença das mulheres próximas a Crowley e ativas nas ordens thelêmicas (Astrum Argentum e a Ordo Templi Orientis, maiores exemplos), a posição ocupada por cada uma delas, nesta ou naquela ocasião, não foi acrescida ou diminuída por atributos masculinos. Se algum mérito receberam, estas o alcançaram por seus próprios feitos e não por sexismo.

A relação existente entre a filosofia de Thelema e as mulheres se dá de maneira capital:

[…] e em sua mulher chamada mulher escarlate está todo poder concedido.

(Líber Al, Cap.I, Vers. 15)

O contato com esse atributo de poder personificado no feminino foi a procura da vida do profeta da Lei de Thelema, Aleister Crowley. Esse contato começou no advento do Livro da Lei, quando sua primeira esposa, Rose Edith Crowley (era Kelley), incita o jovem esposo (este, porém, reticente em todo processo) a receber as palavras sagradas do deus Hórus, em sua primeira viagem ao Egito. Crowley, pelo que consta, estava chocado com o estado de consciência de sua esposa, antes adversa à magia e de parco conhecimento ocultista que, no entanto, reportara-se como Ouada (Rosa em egípcio) e repetira frases enigmáticas como “eles estão esperando por você” ou “tudo isso é sobre a criança”. Ela trazia indícios de um evento que mudaria para sempre o ocultismo no ocidente, sendo a primeira Mulher Escarlate do profeta.

O mago inglês e profeta da nova Lei, não se contentou apenas em receber do Livro da Lei, mas aprofundou-se ainda mais na procura dos “conhecimentos inspirados”, em primeira mão. Após a perda de seu primeiro filho e da separação de Rose Kelley, Crowley casou-se novamente e novamente provou da manifestação da deusa encarnada através de sua esposa, trazendo para a matéria àqueles mistérios mais elevados do Novo Eon, como relata as páginas introdutórias da 1ª Edição do Liber Aleph:

O progresso espiritual de Crowley de Magister Templi 8º = 3, a Magus 9º = 2 abarcou o período de 1914 a 1919, correspondendo aproximadamente à sua viagem aos Estados Unidos. Ele foi auxiliado com o passar dos anos por uma série de mulheres, que ele comparava a dignitárias na cerimônia da sua iniciação. A maioria, se não todas, eram suas amantes, e como catalisadoras mágicas, adotaram nomes terimórficos: “A Gata” (Jeanne Foster / Sor. Hialrion), “A Cobra”, “O Cão”, “A Coruja”, “O macaco” (Leah Hirsig / Sor. Alostrael) , “O camelo” (Rhode Minor / Sor. Ahitha] e “O Dragão” (Marie Lavroff Rohling / Sor. Olun].

A forma como Crowley se relacionava com suas amantes e esposas foi (e ainda é) motivo de controvérsias no meio thelêmico, não apenas por mulheres, mas aos olhos de homens que vivenciaram o século XX.

Maria de Miramar (a segunda esposa), Leah Hirsing (a única que se manteve sã após findar o casamento) e muitas outras amantes que provaram da loucura, dos vícios e da insegurança da vida ao lado do “Pior Homem do Mundo”, compartilhando destinos miseráveis em comum, enlouqueceram, se entregaram ao vício ou cometeram suicídio.

Crowley relata sua procura pela deusa Babalon que reside em cada mulher, sem distinção moral ou qualquer outra, embora negasse não fugir à visão reprimida de um inglês vitoriano em se tratando do sexo feminino, um resquício viciado de uma sociedade falocêntrica arcaizante. As experiências mágickas em prostíbulos ou espetáculos orgiásticos de magia sexual em Cefalú não trazem clareza crítica acerca da personagem do mago inglês e de suas Mulheres Escarlate, ao contrário, revelam a contradição existente no homem que escandalizou o velho mundo sendo ele mesmo tão retrógrado com relação ao sexo oposto.

O papel desempenhado pelas mulheres na A∴A∴. ou na O.T.O. depois de Crowley, aponta outros caminhos.

Com a morte da “Grande Besta”, tanto a A∴A∴ quanto a O.T.O. passaram por momentos difíceis de reestruturação e de quase extinção por parte da liderança que se sucedeu, o O.H.O. e discípulo de Crowley na A∴A∴, Karl Germer. A reestruturação dessas duas ordens se deu pelas mãos de remanescentes empenhados na reconstrução “da casa desordenada”. As mulheres tanto na A∴A∴ quanto na O.T.O. são reconhecidas e lembradas pelo empenho heróico que significou a manutenção da tradição mágic(K)a de Thelema no Mundo em parceria com homens cujos propósitos se assemelham. Menciono abaixo algumas dessas mulheres que merecem nossa homenagem:

Regina Kahl: Foi iniciada na O.T.O., também primeira sacerdotisa da EGC, cuja missa inaugural foi realizada num domingo, 19 de março de 1933 junto a Wilfred T. Smith, na Loja Agape # 2, Califórnia.

Leila Waddell (LAYLAH ou Sor. Cibeles): Amante de Crowley, foi inspiração na criação do The Book of Lies, também foi talentosa violinista.

Phyllis Seckler (Sor. Meral, IXº da O.T.O.): Falecida há alguns anos, foi membro tanto da O.T.O. quanto da A∴A∴ Estruturou o Colégio de Thelema organizando informações e ensino do sistema da A∴A∴ deixados por Crowley. Escreveu ensaios que estão disponíveis na Internet: On Religion e Projections and the Shadow.

Jane Wolfe (Sor. Estai): Atriz americana e uma das primeiras discípulas da A∴A∴, residiu em Cefalú e se iniciou na O.T.O. na Loja Agape #2, na Califórnia.

Mary Butts (Sor. Rhodon): Escritora novelista, poeta, ensaísta e discípula de Aleister Crowley na A∴A∴, residindo na Abadia de Cefalú.

Sor. Helena: Ex-Secretária Geral da Ordem e grande sacerdotisa na Ecclesia Gnostica Catholica, sua atuação enquanto mulher dentro do IHQ foi impecável e de um grande exemplo.

Sor. Babalon: Ex Representante do Frater Superior no país, liderou a O.T.O. no Brasil durante 15 anos. Seus artigos são bastante discutidos e lidos no meio ocultista (thelêmico ou não), mistura amabilidade e severidade sem conflitar consigo mesma.

Essas mulheres, entre outras tantas omitidas neste texto por falta de espaço, contribuem de modo ativo para o estabelecimento e divulgação da Lei de Thelema no mundo.

A todas elas o nosso mais fraterno agradecimento

 


Autor: Frater HHE

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