Gnósticos — Os Heréticos da “Santa Madre Igreja” — Parte 2

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(Leia a Parte 1 deste artigo aqui)

Nag Hammadi, o passado está de volta…

No ano de 367 d.C., o mundo cristão estava em guerra consigo mesmo. Foi nesta época que chegou à comunidade monástica de Tabinnisi, próxima ao Nilo, a ordem para que Teodoro, diretor da comunidade, lê-se a 39a. Carta Festal de Athanasius, bispo de Alexandria, da qual passo a relatar alguns trechos.

[…] Mas desde então temos mencionado aos hereges como mortos e a nós como os possuidores das Divinas Escrituras para a salvação; e por isso temo menos, como escreveu Paulo aos corintos, que alguns dos simples se deixem enganar, por sua simplicidade e pureza, pela sutileza de certos homens, lendo outros livros, os chamados apócrifos, tomando-os, pela similaridade dos nomes, por livros autênticos; te suplico que tenhas paciência se escrevo também, de forma a recordar, sobre assuntos os quais já estás familiarizado, pois o faço levado pela necessidade e pelo maior proveito da Igreja. Ao mencionar estas coisas adotarei o que disse Lucas, o evangelista. Pois alguns hão tomado os apócrifos e os hão misturado com as Escrituras de inspiração divina, das quais temos sido plenamente persuadidos, como aquelas que desde o princípio foram testemunhos e ensinamentos da palavra entregue aos pais; também me parece bom, havendo sido apoiado a isto pelos irmãos, pôr diante de ti os livros incluídos no Canon, aqueles que foram entregues e acreditados como divinos; com a finalidade de que aquele que haja caído no erro possa corrigir àqueles que o hajam extraviado; e que aquele que permanece na pureza possa regozijar-se de novo, voltando estas coisas à sua lembrança…

Athanasius segue relatando os livros que serão aceitos como autorizados e divinos. Esta lista constitui o que hoje chega ao nosso conhecimento como Bíblia.

[…] Estas são a fontes da salvação, as que com as palavras nelas contidas podem satisfazer a quem tem sede. Somente nelas se proclama a doutrina da divindade. Que nenhum homem acrescente e nem retire nada delas. Pois neste ponto o Senhor envergonhou os saduceus dizendo-lhes: “Errais, não conhecendo as escrituras”. E reprovou aos judeus dizendo-lhes: “Busca as escrituras, pois estas dão testemunho de mim

Diante desta carta fica oficialmente decretado o esqueleto literário da Igreja, considerando-se tudo o que esteja além deste como apócrifo ou, melhor dizendo, não autêntico, duvidoso e, principalmente, fora da lei, constituindo uma heresia.

Nos nossos dias ser considerado herege, longe de uma depreciação, equivale a pensador independente e de arrojada intelecção. Mas, naqueles tempos, o termo herege era uma ofensa grave, tornando-se aquele a quem o termo era agregado, passível de excomunhão.

Aproximadamente no momento em que se transmitia a 39a carta de Athanasius, bispo de grande importância, conhecido por seu “dom” de introduzir o ódio e medo no coração dos não ortodoxos, um grupo de pessoas decidiu enterrar numa vasilha feita de argila vermelha 13 livros, atados com couro, que continham 46 textos diferentes e apócrifos.

Muitos, principalmente os da Igreja, têm afirmado que o objetivo de quem os enterrou era propiciar o seu desaparecimento, mas isto não condiz nem com a forma habitual de destruí-los que era queimando-os, nem com o cuidado com que foram guardados e que permitiu que se preservassem até ao nosso século. Quem quer que seja que os haja escondido demonstrou extremo carinho e extremo zelo na maneira como os escondeu na areia, demonstrando profundo amor pelas obras ali contidas.

A vasilha era como um pequeno útero que guardava, silenciosamente, um momento de nossa própria história.

Em dezembro de 1945, três filhos de Ali e Umm-Ahmad, do clã al-Samman, Mohammed, Khalifa e Abú al-Majd estavam trabalhando perto de al-Qasr, povoado situado a 6 km de Nag Hammadi, na estrada principal que conduz ao Cairo. O irmão mais novo, Abú, desenterrou a vasilha perto de uma pedra e o irmão Mohammed, dez anos mais velho, assumiu o descobrimento. A princípio não quiseram ver o conteúdo da vasilha com medo de que contivesse algum espírito maligno, mas depois retornaram ao local e a quebraram, tomando posse do seu conteúdo. Quando se aperceberam que seu conteúdo dizia respeito ao povo cristão se desinteressaram, queimando alguns e vendendo outros.

Por este motivo, somado a motivos políticos e religiosos, muitos dos documento contidos na vasilha, permaneceram em mãos de particulares e ocultos por muito tempo, levando um considerável tempo até a sua publicação. Somente em 1977, 32 anos após o descobrimento dos escritos, é que se publicou pela primeira vez a biblioteca de Nag Hammadi.

Se Mohammed Ali fosse capaz de ler copta, a língua do antigo Egito escrito em letras gregas, talvez tivesse atentado para o seguinte parágrafo, mudando, quem sabe, o destino dos apócrifos: “Te darei o que nenhum olho jamais viu, o que nenhum ouvido jamais escutou, o que nenhuma mão jamais tocou e o que nunca foi pensado por nenhuma mente humana.”

Conclusão

Apesar da diversidade de seitas gnósticas que divulgam uma infinidade de pensamentos, conforme a compreensão do universo alcançada por seu fundador, existe um núcleo que parece exercer forte poder sobre elas, mantendo-as orbitantes em torno deste ensinamento, assim como os planetas giram em torno do sol. Este núcleo exprime a natureza divina do homem, o portador da centelha do Pai, e a necessidade, quase instintiva, de se retornar à origem de tudo libertando-se da matéria, ou seja, retornar a Deus.

O método ensinado em todas as seitas para se alcançar esta libertação caminha pela senda do auto-conhecimento e pelo esforço pessoal. Não há uma fórmula salvadora e libertadora além do conhece-te a ti mesmo.

O que demarca a existência das diversas seitas gnósticas é a forma com que se exprime o mito da queda e o retorno à Luz Primordial, mas os gnósticos são os primeiros a afirmar que a verdade é universal seja qual for a forma por ela adotada para se manifestar. O fato de termos diversos planetas orbitando em torno do sol não invalida a veracidade da existência de cada um deles, do mesmo modo, a existência de inúmeras seitas gnósticas não invalida a veracidade de cada uma delas, principalmente se atentarmos para o fato de que seu ensinamento é único.

Semelhante ao que ocorria no séc. II, vemos nos nossos dias uma grande confusão política e social, levando a uma busca de novos valores e a uma conseqüente reinterpretação do mito divino com a formação de novas filosofias e religiões. O homem, indócil com sua condição, questiona suas origens e seu destino, buscando um caminho de libertação. As estruturas até agora vigentes se dizem herdeiras da sabedoria milenar e lutam pela manutenção do poder, acusando a sociedade emergente de herege e pecadora, passível de punição pela “bondade” divina. E ainda assim, mesmo sob a ameaça de excomunhão do reino de Deus, alguns homens e mulheres ousam erguer suas cabeças acima da ilusão moral criada e respirar outros mundos, criando outros pensamentos, outros conceitos de homem, de vida e de Deus. Estes homens e mulheres ousam pensar: a grande blasfêmia!

Estranho é que, justamente no atual contexto, a terra mãe comece a fazer ressurgir textos falando de outras realidades, outras possibilidades do ser, trazendo esperanças de um novo amanhecer. Estaríamos nós, em pleno séc. XX presenciando o ressurgimento do gnosticismo?

Não tenho resposta para esta questão. O fato é que ainda temos um longo caminho a percorrer. Somos como crianças que despertam de um longo sono, buscando ainda a coordenação de nossos próprios movimentos, tentando reaprender a andar e a pensar segundo nossa própria vontade. Despertos para uma realidade que ainda não compreendemos, buscamos reunir os retalhos que restaram do eclipse religioso a que inocentemente sucumbimos. O que é realmente válido é que estamos todos, de uma forma ou de outra, buscando reencontrar nosso elo perdido e, neste momento de caos, é importante que relembremos o ensinamento não só gnóstico, mas de todas as eras: Homem, conhece-te a ti mesmo.


Autora: Soror O. Naob

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