A Gênese Cabalística

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Introdução

Normalmente os estudos cabalísticos sobre a Criação, a Gênse baseiam–se em uma série de análises gemátricas e temúricas do primeiro livro da Torah. Estas análises podem ser encontradas com uma certa facilidade, inclusive da autoria de grandes nomes da Cabala. Este estudo propõe–se a seguir uma linha diferente, analisando os aspectos filosóficos por detrás do ato de Criação e mostrando com estes aspectos aplicam–se sob uma ótica Thelêmica ao dia–a–dia.

Breve Histórico da Cabalá

Antes de se estudar a filosofia por detrás da Gênese Cabalística é interessante que tenhamos algum conhecimento da gênese da própria filosofia cabalística. Um breve estudo da história da mesma dá alguma luz sobre a forma de se encarar um texto da Cabala.

Não existem registros da exata época do surgimento da Cabala. Quando de seus primeiros registros escritos — a Torah e o Sepher Yetzirah, em cerca de 515 p.e.V. — esta já surge como um sistema filosófico, teogônico e mágico completo, denotando um longo desenvolvimento anterior. Este desenvolvimento, acreditam os historiadores, começou quando da escravidão dos hebreus no Egito e depois na Babilônia, onde os traços culturais destes povos foram absorvidos e reinterpretados. Desta longínqua época até a escritura da Torah não existem quaisquer dúvidas de que a Cabala era uma tradição puramente oral, onde já se encontrava a principal divindade, Iehovah.

Em cerca de 450 p.e.V. os rabis Ezra e Nehemiah puderam finalmente compilar o Velho Testamento do Hebreus, ou como reza a tradição, Mosheh escreveu seu Pentateuco. Isto marcou um renascimento do culto da Cabala, dando origem ao que conhecemos hoje como Judaísmo, o qual manteve–se inalterado até 320 p.e.V., quando Ptolomeu Soter tomou a cidade de Yerushalom (Jerusalém), destruindo o culto judeu. Seu sucessor, Ptolomeu Philadelphus, entretanto, resgatou o culto e ordenou sua revisão e tradução para o Grego por setenta e dois estudiosos em 277 p.e.V. Desde então tanto o Judaísmo quanto o Cabalismo passaram por uma série de provações, tanto oriundas das antigas filosofias e religiões quanto das novas.

Com as imigrações judaicas para a Europa, estas doutrinas foram sendo espalhadas pelo mundo, muitas vezes voltando às suas origens de tradição oral; algumas vezes por conveniência ou tradição, outras vezes como única forma possível ou segura. Isto não apenas gerou uma considerável diferenciação entre a doutrina primitiva e a de então (mais ainda em referência à atual) mas provocou o surgimento de uma diversidade de escolas diferentes. Tais escolas não limitavam–se apenas à diferentes interpretações da Torah e da outra grande obra desta filosofia, o Zohar, o “Livro do Esplendor”. As diferentes escolas também agregavam ao cabedal de conhecimentos dos clássicos teorias tais como a “queda” da humanidade, o renascimento do homem como mulher e a punição dos pecados cometidos em vidas passadas, oriundos das tradições neoplatônicas e gnósticas cristãs.

Algo desta tradição, contudo, chegou até escolas iniciáticas não–judaicas e foi incorporado ao compêndio de conhecimento das mesmas e muito deste conhecimento foi a origem da Cabalá Européia e à vertente da Cabalá que estudamos dentro da O.T.O., esta herdada da Golden Dawn.

O Processo de Criação

O processo de criação do Cosmo pela tradição cabalística é consideravelmente conhecido por toda a civilização ocidental, posto ser esta a origem na cosmogonia cristã. Outrossim, a fonte original traz–nos algumas considerações interessantes, pontos específicos que foram deixados para trás pela filosofia cristã. Uma pequena visualização deste processo se faz, agora, necessária.

O primeiro ponto a ser considerado é o fato de que o Deus criador é, também ele, uma criatura. Para o cabalista o princípio criador é a Torah. Aqui deve-se tomar cuidado pois não estamos nos referindo neste ponto ao livro que recebe este nome, mas à força primal de toda a criação, o moto primo de tudo. Em Hebraico, a palavra “torah” significa “lei”. Antes de ser uma série de regras aplicadas ao ser humano, a Torah é a Lei que rege o funcionamento do Macrocosmo, não apenas a nível moral ou físico mas abrangendo todo o escopo espiritual, físico e energético do Universo. Foi esta Torah, esta “forma correta de Ser” que deu origem a Deus. E aqui devemos fazer outra parada pois o Deus cabalístico não é o Deus único, antropomorfizado, mutilado e limitado a um aspecto patriarcal e masculino, ao qual o homem ocidental está acostumado e sim um complexo de formas–pensamento, de Inteligências, de arquétipos e forças, tanto de âmbito masculino quanto feminino. O Deus criado pela Torah para o gerenciamento da Criação é um Deus completo em si mesmo, o protótipo do Adam Kadmon, o Homem Primordial hermafrodita e pleno em si mesmo, que viria a seguir. Pois este é o propósito do primeiro passo da Gênese: o estabelecimento de um propósito que moveria todo o processo a seguir em uma direção específica, controlando, organizando e disciplinando as energias envolvidas no processo..

Este processo continua através de seis “dias”, apresentando uma série de passos seqüenciais e lógicos e não períodos de tempo. A cada “dia” um componente do Universo é diferenciado, criado, analisado e confirmado. Note–se que cada “dia” termina com a frase “e ele viu que isto era bom”, ou seja, analisou o que havia acontecido. Ou seja, Deus utiliza seis eras, seis etapas diferentes para a Criação. Estudos gemátricos e temúricos indicam que esta criação estava direcionada completamente para a etapa final, o sexto dia, a criação do Ser Humano. Este Ser Humano primordial é criado “à imagem e semelhança de Deus”, ou seja, é criado não como uma entidade subserviente e sim como uma divindade em potencial.

Após a última etapa do processo é dada aos Melachin (os anjos cabalísticos) a tarefa de nomear as coisas no Universo. Um ponto fundamental a ser lembrado aqui é a importância atribuída pela Cabala aos nomes. Na Tradição Cabalística um nome não é apenas um rótulo a ser dado a alguma coisa. Um nome deve representar a essência daquilo que nomeia. Algo só pode ser criado se àquilo puder ser dado um nome correto. Temos então que se as coisas no Cosmo não possuíam um nome elas ainda não existiam de fato. Eram apenas potencialidades presentes em Kether. Entretanto, os Melachin não conseguem dar às coisas seus nomes, ou seja, eles falham em transformar estas potencialidades na realidade de Malkhut. Quem toma esta tarefa e a executa é Adam Kadmon, que, no fim das contas, cria o Cosmo e tudo nele contido. Com isto, o Ser Humano é premiado com o Livre Arbítrio, enquanto aos Melachin resta permanecerem como meras ferramentas entre a divindade superna e a divindade materializada.

Finalmente, é criada, a partir de divisão Adam Kadmon, a figura de Chava (Eva), que atuaria como sua companheira da outra metade gerada em conjunto, Adam. O restante da história, envolvendo frutas, árvores e serpentes é mais do que conhecido por todos. Esta alegoria possui uma interpretação diferente dentro da Cabala do que a dada pelo Cristianismo. Porém esta interpretação foge do escopo deste trabalho e não será comentada aqui.

Interpretação Filosófica

As famosas primeiras palavras originais do Gênese mosaico são “bereshit barah Elohin et”. São extensos e numerosos os estudos que tratam destas palavras e seria redundantemente exaustivo repeti–los todos aqui em sua íntegra. Para os fins deste estudo, basta–nos a colocação de que estas palavras já trazem em si a idéia da Criação com a Morada (a letra Bet) do Homem e como uma bênção (“bracha”). Consideremos que uma moradia, um lar, evoca a idéia de proteção e conforto, da mesma forma que a idéia de bênção reforça a idéia de proteção. Isto coloca–se contra o conceito do mundo material como um local de provação e tormentos. Uma casa abençoada não poderia ser um Vale de Lágrimas mas ao contrário, um local de êxtase e regozijo. Estas palavras trazem também um ponto interessante na figura de Elohim. Em geral o nome “Elohim” costuma ser traduzido simplesmente como “Deus”. Porém o mais correto seria “Deusas” posto ser Elohim não um princípio masculino e sim feminino e a palavra denotar um plural e não um singular. Não sendo um deus castrado em sua androginia divina, pode utilizar a faceta de energia sexual que for mais conveniente para cada caso. E são as justamente as energias femininas de geração que realizam a Gênese.

Existe também fator tempo a ser considerado. É esta a chave para a compreensão dos seis dias de criação do Cosmo na cosmogonia cabalística. Esta divisão do processo em seis etapas reflete a estrutura de criação colocada pelo caminho da Espada Flamejante da Otz Chain (a Árvore da Vida). Ou seja, o processo de formação a partir de Kether em direção a Malkhut, passando pelos mundos Arquetípico, Criativo, Formulativo e Ativo. E, a partir da correspondência entre Macro e Microcosmo podemos revelar este mesmo processo na estrutura do Adam Kadmon, onde o processo de criação passa mais explícitamente por seis etapas: Yechidah, Chiah, Neschama, Ruach, Nephesh e Gulph. Isto indica, fundamentalmente, duas coisas. A primeira delas é a necessidade que o processo criativo tem de uma disciplina. Sem uma correta disciplina estas energias postas em movimento não adquirem a estrutura necessária para passarem de meros conceitos à materialidade. Cada passo do processo deve ser executado de forma ordeira, em seu momento correto para que o objetivo seja alcançado. E da mesma forma que o processo da Gênese seguiu tais parâmetros, em nossas gêneses pessoais — e em qualquer outra atividade que seja executada — o sucesso só é alcançado se esta mesma filosofia de ação for seguida. O Ser Humano foi criado com a potencialidade do Deus mas esta potencialidade só pode ser alcançada quando trabalhada disciplinadamente. Caso esta disciplina, esta ordenação das coisas, este respeito ao tempo certo de tudo, não sejam levados em conta o que se tem é apenas o mero fracasso em uma empreitada ou resultados obtidos por pura sorte e, por conseguinte, dificilmente reproduzíveis ou mesmo desejáveis. Outra característica desta disciplina é o seu aspecto analítico. Deus não apenas cria o Universo, ele o analisa e pondera se o que foi feito era ou não bom. Com isto temos que um processo de criação não deve ser deixado por si, mas acompanhado criteriosamente, passo a passo.

Um detalhe interessante é que a consideração “diária” de que aquilo era “bom” não ocorre no segundo dia. Este é o dia das separações, quando céu e terra, o seco e as águas, a luz e as trevas são separados. Poder–se–ia questionar qual o porquê de Deus não considerar esta separação “boa”. Em primeira instância pode-se vir a pensar que a separação seria considerada “ruim”. Esta interpretação porém é fruto de uma falta de análise mais acurada. Ocorre que a divisão não é algo bom ou ruim. Ela simplesmente “é”. A dualidade causada pela divisão é um componente fundamental de tudo pois o Um é, por definição, estático enquanto o Dois é dinâmico; e sem este dinamismo da divisão o processo de criação não pode prosseguir. Deus então simplesmente aceita esta condição necessária e abstêm–se de comentar sua qualidade. Da mesma forma quando, individualmente, estamos em um processo criativo devemos estabelecer sempre um equilíbrio dual de forma a gerarmos esta mesma dualidade dinâmica.

A questão seguinte a ser considerada é a questão dos nomes. Como dito anteriormente, todo o conteúdo da Criação recebeu seus nomes de Adam Kadmon. Foi dito também que dentro da filosofia cabalística algo só pode existir se puder ser nomeado. Nomear torna–se portanto um processo criativo. Cria–se ao nomear. Entretanto não foi Deus, supostamente o Criador, que efetuou esta nomeação. Disto podemos concluir que a Criação não foi, afinal, um ato de Deus, mas do nomeador de todas as coisas: Adam Kadmon. Desta forma passa–se a ver o Ser Humano não apenas como uma criatura passiva no processo do Gênese e sim como o efetivo criador do Cosmo. O prêmio recebido foi o Livre Arbítrio, o qual merece ser estudado. Pois este Livre Arbítrio é um tema apaixonante para debates. Normalmente considera–se como sendo o Livre Arbítrio a capacidade de se manipular o próprio destino. Ocorre que aqui pode (e deve) ser colocado uma proposição do Liber AL vel Legis: “tu não tens o direito de fazer senão a tua vontade” (AL I:42). Este Livre Arbítrio então, em uma visão Thelêmica seria justamente esta Vontade. Ao assumir a Criação o Ser Humano recebe também a sua Grande Obra a ser cumprida. Desta maneira, o Livre Arbítrio seria, dentro da perspectiva de Thelema, a capacidade humana de seguir em direção à Verdadeira Vontade e à Grande Obra.

Finalmente vemos no passo final da Criação, que da passagem da Unicidade para a Dualidade por Adam Kadmon, cria Chava e Adam. Isto é uma óbvia alegoria que, mais uma vez, remete à necessidade da divisão e à natureza divina do Ser Humano. Pois o Adman Kadmon traz em si os atributos masculinos e os femininos. É nesta divisão que o homem e a mulher recebem suas características individualizadas, passam a ser limitados à metade de suas essências. Isto é feito em prol da necessidade de se experimentar a dualidade, visando o auto–conhecimento pela análise das partes. Entretanto, uma vez alcançado este autoconhecimento o ser humano passa a ver também sua natureza mutilada e inicia a ascensão à divindade tendo como um dos primeiros passos a recuperação de sua metade perdida, o alcançar da androginia.

Conclusão

Vê-se por este estudo que a Cabala enxerga no Ser Humano uma divindade ainda em potência mas capaz de alcançar, através do autoconhecimento sua plenitude divina. Este autoconhecimento, entretanto, é um caminho a ser trilhado através de um método disciplinado e analítico. É posta de lado também a noção da vida como uma espécie de punição imposta por uma divindade tirânica à humanidade; muito pelo contrário, vê-se a vida como uma dádiva a ser utilizada em prol de nosso Livre Arbítrio, que em um sentido Thelêmico não é nada menos que a almejada Verdadeira Vontade. Uma vez alcançado este estado tem–se o libertar da condição de divisão dual e alcança–se o estado de unidade bipolar e, por fim, o retorno à condição de Adam Kadmon.

O estudo da Cabala é um trabalho apaixonante e tremendamente vasto mesmo em sua simplicidade. Recomenda-se a todo o estudante de Thelema este estudo por estar a Cabalá em uma das bases de nossa filosofia e também para poder compreender melhor a origem de uma filosofia de vida e magia que foi tremendamente deturpada pela civilização cristã.

Referências

  • La Qabala Desvelada; Mathers, MacGregor
  • A Cabala Mística; Fortune, Dion
  • Liber 777 and Other Qabalistic Writings of Aleister Crowley; Crowley, Aleister
  • A árvore da Vida — Um Estudo Sobre Magia; Regardie, Israel
  • Artigo The Basics of the Kabbalistic System; Gault, R. T.
  • Artigo An Introduction to The Study of The Kabalah; Westcott, William Wynn
  • Palestras “A Cabalá no Dia-a-Dia”, “Meditação Cabalística” e “Rituais Cabalísticos”; Rav Mário Meir (Sinagoga Aron Habrit / Academia de Cabalá)

Autor: Frater Her-ur

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