Goécia e Abramelin

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É, entretanto, sempre fácil chamar os demônios, pois eles estão sempre chamando você, e você tem apenas que descer ao nível deles e confraternizar. Eles vão fazer você em pedaços por diversão. Não de uma vez: eles vão aguardar até você ter totalmente quebrado o elo entre você e o seu Santo Anjo Guardião antes de o agarrar, a fim de que você não escape no último momento.
Magick, Capítulo XXI

O velho Crowley devia saber o quê dizia; afinal, era ainda recém chegado na Hermética Ordem da Aurora Dourada quando um dos magistas mais respeitados se aproximou dele e disse:

— Então, pequeno irmão, que você tem mexido com a Goetia.

Diante da sua negativa sincera, teve por resposta:

— Então a Goetia tem mexido com você.

Crowley mais tarde veio mesmo a trabalhar com o sistema goético, como expôs no ensaio “The Revival of Magick”:

Uma de nossas maiores façanhas foi salvar a vida do meu mestre. Absolutamente não egoísta, ele nunca iria se mexer para ajudar a si mesmo, e ele era um inválido permanente com asma espasmódica, com complicações. Frater V.N. e eu determinamos, em nome e em benefício da Ordem, salvá-lo. Nós invocamos o espírito Buer à uma aparição visível. Isto não foi totalmente bem sucedido; nessa época nós queríamos que as coisas acontecessem como nos livros — pois nós éramos jovens. Mas conseguimos a perna direita e o pé e o tornozelo da esquerda tão sólidas quanto preciso; e a cabeça, com elmo, era vagamente visível através da fumaça do incenso. Nesses dias nós éramos demasiado pios para usar sangue, ou poderíamos ter feito melhor. Entretanto, o propósito do trabalho foi bem sucedido. O Mestre recuperou-se, e está vivo até hoje — quinze anos depois.

Minha primeira experiência foi em 1993, quando, por coincidência, pouco antes de receber o exemplar da Goetia que havia encomendado, tive um problema muito sério no banco onde trabalhava, com o desaparecimento de alguns documentos. Os documentos haviam sido procurados por mais de uma semana, em vão, e isso ia me custar quase um mês de salário, em tempos apertados.

Recebendo o livro, resolvi que já era hora da Magia ter algum resultado concreto. Selecionei e invoquei o Espírito Phenex, disse o quê precisava, e guardei silêncio.

A minha esposa de então chegou em casa à noite. Quando fomos deitar, ela se sentiu inquieta e perguntou, na lata, se eu havia invocado um demônio, pois estava “vendo” um, com forma humana, usando um elmo, andando sobre uma placa em chamas. Tive sonhos apocalípticos a noite toda, e acordei cedo com a inspiração de ir pessoalmente ao departamento de arquivo. Parecia que um fogo intermitente me cercava e acompanhava… Quando cheguei no arquivo, o funcionário estava com os documentos na mão. Repetiu várias vezes que tinha tido “uma intuição” e fora procurar no armário de uma outra agência, onde, de fato, eles tinha sido guardados por engano.

Esse tipo de “impulso” de inspiração mágicka tem um correlato na descrição que Crowley deu sobre uma outra invocação ainda no “The Revival of Magick”:

Como um exemplo, vou dar o uso que fiz de um dos talismãs de Abramelin “para ter livros de magia.” Quando eu o consagrei, fui infantil o bastante para esperar uma aparição instantânea do Gênio com chamas em sua boca e livros na sua mão. Ao invés disso, tudo o quê aconteceu foi que um homem pediu para me ver com os livros que justamente eu precisava, para vender. O ponto desta estória é que eu gastara semanas em todos os livreiros da Inglaterra tentando conseguir justamente esses livros. E o homem não sabia nada disso; ele tinha vindo em um impulso.

As teorias sobre a natureza dos demônios são correlatas aquelas que apresentei sobre o Santo Anjo:

  • São entidades supranaturais.
  • São projeções de nosso psiquismo.
  • São almas de seres humanos involuídos.

A primeira hipótese tem duas versões:

A versão talmúdica: os demônios são seres intermediários entre os homens e os anjos.

A versão cristã: eles são anjos caídos.

Entretanto, do ponto de vista prático, o conselho corrente é que o magista lide com eles como se fossem aquilo que parecem ser: seres independentes. É sempre bom lembrar que um ritual e suas consequências nunca vão se conformar plenamente com a teoria. Como exemplo, lembro da vez que fui auxiliar um Frater da Ordem em sua primeira invocação: o Espírito se manifestou antes de ser chamado… O que nos leva de volta à citação no começo do texto: afinal, quem estava chamando quem? O impulso daquele Frater em chamar o Espírito já não seria sua reação ao chamado que o Espírito lhe fazia? Isso nos remete à todas as estórias terríveis sobre os infortúnios que caíram sobre as primeiras pessoas que tiveram acesso à tradução do Livro de Abramelin, e a observação que Crowley fez na sua auto-biografia, dizendo que “os espíritos de Abramelin não esperam ser chamados para aparecer.”

Com o passar do tempo, fui deixando de lado os trabalhos com a Goetia, por uma questão de economia iniciática: quando você deixa a planície da Magick e inicia a escalar a Montanha, toda sua atenção e esforço se voltam para a tarefa difícil, da qual se desviar é sempre desastroso, cada vez mais quanto mais alto se vai. Mas, embora com força e frequência cada vez menores, senti por bom tempo “o chamado” da Goetia, encontrando situações que pareciam “pedir” por esse tipo de intervenção. E, me parecia que, tendo uma vez aberto o caminho, bastaria um pensamento mais direcionado para que aquelas energias realizassem meu desejo, o quê me levava a considerar com a maior atenção o ensinamento de Crowley:

O Único Supremo Ritual é a Realização do Conhecimento e Conversação com o Santo Anjo Guardião. É a elevação do homem completo em uma linha vertical reta. Qualquer desvio desta linha tende a se tornar magia negra. Qualquer outra operação é magia negra.

Entretanto, o sucesso dessa Obra é seguido, justamente, por uma invocação de TODOS os poderes demoníacos… Lon Milo Duquette, membro proeminente da O.T.O., no seu livro “The Magick of Thelema” explica:

Sou frequentemente indagado por que a primeira coisa que o Magista faz após seis meses de piedosa aspiração à “mais alta” realidade espiritual, é convocar os habitantes do Inferno. A resposta é simples. Você não está operando em um vácuo. Assim como é acima, é abaixo. Seu Anjo desceu para lhe garantir a graça da união. De forma a completar o circuito, você deve por sua vez descer e transmitir a mesma graça para o mundo abaixo de você. Se você falha em redimir, controlar e treinar a menagerie de sua natureza inferior, esses “demônios” vão ressurgir tão logo o brilho da presença do seu Anjo tenha desvanecido, e vão literalmente “fazer o Inferno” com você.

Crowley expressa um tom mais aristocrático no Magick:

Não obstante, todo magista deve firmemente estender seu império ao fundo do inferno. “Meus adeptos estão erguidos, suas cabeças acima dos céus, seus pés abaixo dos infernos.”

Esta é a razão porque o Magista que realiza a Operação da Sagrada Magia de Abramelin o Mago, imediatamente após alcançar o Conhecimento e Conversação com o Santo Anjo Guardião, deve invocar os Quatro Grandes Príncipes do Mal do Mundo.

Obediência e fé para Ele que vive e triunfa, que reina acima de você em seus palácios como a Balança da Retidão e da Verdade é a sua obrigação para com seu Santo Anjo Guardião, e a obrigação do mundo demoníaco para com você.


Autor: Frater Al Dajjal

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