Ética & Thelema

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Freqüentemente o pensamento do homem se depara com questões universais, questões que não perdem a sua atualidade, pois estão sempre se renovando, frente a novas interrogações ou sendo analisadas por ângulos inéditos. A questão que retoma nossas atenções, nos dias de hoje, é a Ética1 e sua prima, não menos importante, a moral2.

Atualmente presenciamos um movimento aparentemente caótico da humanidade, frente a problemas críticos, como a produção de clones (animais e humanos), a produção de sementes através de manipulação genética, assim como de microorganismos para a o desenvolvimento de armas biológicas; a manipulação da economia mundial, a qual favorece absurdamente a concentração de renda nas mãos de poucas pessoas no mundo inteiro, permitindo com isso que mais de 5 bilhões de pessoas se encontrem abaixo do nível de pobreza; como o egocentrismo, egoísmo e soberba dos políticos, que defendem um sistema hipócrita, que se baseia em uma igualdade utópica e racionalmente inatingível e que prometem o que não são capazes de cumprir, seja por incompetência ou por impossibilidade estratégica do sistema ao qual defendem, já que o mesmo sustenta sua existência através do desnível social e ignorância do povo; como pelo desenvolvimento de indústrias de nenhuma utilidade social, que somente crescem por serem do ramo armamentista ou por estarem baseadas em alguns meios estratégicos de domínio de massas, com o ramo das comunicações, etc… Tudo isso, conseqüência do fenômeno capitalista, ou seja, a ação incentivada pela troca pecuniária com lucro, ou seja, com o acréscimo dos recursos empenhados. Essa tendência, que foi desenvolvida a partir da valorização do comércio, que na Idade Média Baixa, se dava entre feudos europeus e o oriente, através de mercadores foi se aprimorando, até produzirem aglomerados de empresas, incentivando tendências humanas degenerativas, como: cobiça, avareza e soberba, hoje materializadas no financiamento de guerras para enriquecimento de indústrias, na manutenção da pobreza, como estratégica para fins políticos, artimanhas econômicas para posterior financiamento de campanhas eleitorais; desvio e manipulação de recursos sociais, prejudicando a população, etc…

Essas características se desenvolveram e fizeram o homem perder o seu metrum, palavra latina que se refere àquela medida, pela qual o homem é Homem e não outra coisa ou ser. O metrum do Ser Humano3 pode ser conhecido através da Ética.

Podemos então partir para uma primeira conclusão sobre a Ética, ela é uma virtude ou melhor, capacidade humana, aparentemente não existindo no animal ou em outros reinos no planeta terra, e através dela é sustentado os limites do Ser Humano.

Porém nos dias de hoje, com o avanço e supremacia das ciências, o conceito de Ética ficou preso nessa concepção, tornado-a limitada a visão científica. O que resulta sempre numa tendenciosidade quanto da utilização do termo, referente à área de quem a utiliza. Como não existe uma ciência do homem e se existisse, seria corrupta, pois o homem não pode ser comprovado experimentalmente, nem teorizado racionalmente, deveria-se entregar a conceituação e compreensão do termo Ética a orientação filosófica, que apesar de sua limitação racional, estaria mais apta a indicar uma visão mais ampla do tema.

A Ética está presente no conhecimento do homem há muito tempo, não se pecaria por excesso, se fosse presumida a idade de cinco mil anos, pois estaríamos respaldados pela famosa epopéia hindu, conhecida como Mahabarata, onde Crishna, o Senhor dos Mundos, orienta Arjuna e seus irmãos, sobre a postura Ética do Homem.

Mas para não nos distanciarmos da proposta e limitação filosófica, seria conveniente partir do primeiro filósofo a tratar a Ética de forma estruturada e fundamentada conceitualmente: Sócrates.

Sócrates inaugura a concepção metafísica no conhecimento do homem ocidental, permitindo uma visão analítica4 do homem. Essa visão metafísica é dada a partir da premissa de que o “o Homem é a sua Alma5“. Então se o Homem é a sua Alma, não é o seu corpo ou qualquer outro constituinte do mesmo.

Para Sócrates6, a Ética estava relacionada com a Virtude, que estava intimamente ligada com a consciência; o mal, ou a falta de virtude estava relacionada com a ignorância. Restrição que influenciou muito o pensamento grego da época, concluindo que se a pessoa conhecia a virtude, não poderia cometer más ações, imprimindo uma Ética prática. Possivelmente um reflexo do comportamento Pitagórico7.

Aqui poderíamos visualizar algo muito próximo de um dos pilares da Filosofia Thelêmica, o “Faze o que tu queres deverá ser o todo da Lei”, sendo somado ao “tu não tens direito senão o de fazer a tua vontade”. Pois a consciência que é concebida nessa época, não está relacionada ao estado psicológico ao qual estamos acostumados a compreender essa definição, mas a um estado de compreensão da verdade, talvez próxima a concepção de Verdadeira Vontade. Pois na época a Virtude era aquilo que aprimorava e concretizava plenamente a natureza do Homem.

Para entendermos melhor o conceito de Sócrates sobre Alma, vamos analisar o que pensavam os contemporâneos de Sócrates sobre a constituição do homem.

A cultura Helênica da época, via o homem como um ser formado de três esferas: Soma (Corpo Material), Psyché (Alma) e Nous (Espírito). Fazendo um paralelo com a Estrutura Septenária da composição do Homem, do conhecimento hindu, a qual chegou até os nossos dias, através de H. P. Blavatzky, teremos que na primeira esfera, denominada de Soma, se encontram os corpos: físico (Sthula-Sharira) e o energético (Prana), e na esfera denominada de Psyché, se encontram os corpos: emocional (Linga-Sharira), o mental inferior (Kama-Manas) e parte do mental superior (Manas), restando à última esfera, o corpo mental superior (Manas) e o restante da Tríade Superior (Buddhi e Atma). Essa visualização apresenta-se melhor, se compararmos o sistema hindu, com o Caduceu de Hermes, síntese esotérica do sistema de conhecimento grego.

Esclarecendo a concepção socrática, podemos ver que não estamos falando de uma alma como é concebida, durante a baixa idade média, pelo cristianismo, e depois difundida erroneamente por centenas de anos, mas sim de um conceito mais amplo de alma, envolvendo emoções, mente e espírito. Estruturando portanto, a porção que é própria do homem como Ser Humano8, e assim possibilitando o fornecimento dos pré-requisitos necessários para que se afirme, ser a Ética, eminentemente humana9.

Aristóteles, faz uma releitura da Ética em Sócrates, que é muito bem demonstrada numa montagem feita por Givanni Reale, costurando alguns conceitos aristotélicos:

O homem é principalmente razão, mas não apenas razão. Com efeito, na alma “há algo de estranho à razão, que a ela se opõe e resiste”, mas que, no entanto, “participa da razão”. Mais precisamente: “A parte vegetativa não participa em nada da razão, ao passo que a faculdade do desejo e, em geral, a do apetite participa de alguma forma dela enquanto a escuta e obedece”. Ora, o domínio dessa parte da alma e sua redução aos ditames da razão é a “virtude ética” a virtude do comportamento prático.

Porém Aristóteles ainda salienta que somente através do que ele chamou de dianoética, ou seja, de basearmos a ética sobre dois pilares atemporais, como a sabedoria (Phrónesis)10 e a sapiência (Sophía)11 , chegaríamos a “felicidade perfeita”.

Realizando um parêntese, vamos focalizar os movimentos humanos nessa época. A grande força do povo helênico era sua capacidade de coesão de homens, sendo fundamental a idéia da Polis12 grega, que se reflete até em nossos dias, sendo que a característica fundamental do padrão grego era voltar todos os esforços para a Polis e para o Estado, porém, após o pensamento de Sócrates e Aristóteles, e principalmente pelo domínio político de Alexandre Magno, houve uma mudança radical no pensamento dessas pessoas, transferindo o centro das questões, da Polis, para o Indivíduo, ocorrendo assim uma cisão entre Ética13 e Política14.

Existe a idéia popular de que Ética é uma virtude humana que evita que o homem faça o que bem entender, possibilitado o comportamento social para uma convivência mais digna.

Esse comentário apesar de ser compartido por muitos, não é inteiramente correto, principalmente se analisado pelo ponto de vista filosófico. A Ética realmente é uma virtude, como já decorremos anteriormente, mas não devemos confundir Ética com moral, que também é um conceito humano, mas com a característica social, ou seja, ligada à Polis, à política e à temporalidade.

Ética reflete a idéia de comportamento pessoal, ou seja, a coerência da pessoa com seus pensamentos e sistema de vida. Podemos ver a manifestação dessa coerência na Grécia e mais tarde em alguns períodos em Roma, onde os pensadores formavam Escolas Filosóficas, e publicamente divulgavam os seus pensamentos e por coerência a esses pensamentos, agiam de acordo com os mesmos. Isso era Ética.

Moral vem do latim morus, que designa costumes, que pela tradição romana, estava ligada a convivência social, bastião fundamental da “comum unidade”, ou seja, padrões que proporcionavam a convivência de pessoas de diversos grupos diferentes nas cidades romanas.

Então podemos concluir que a Moral é social, a Ética é pessoal. A moral está ligada a lei dos homens, a Ética a Lei Universal; a Moral está restrita a constituição quaternária do homem (matéria, energia, emoções e pensamentos) já a Ética está relacionada à Tríade Superior, ao Espírito15.

Fazendo uma conexão com a filosofia thelêmica, podemos destacar que a finalidade primeira da mesma é atingir o “Eu superior” e a partir desse, desenvolver uma Ética própria, a qual permitirá a realização da Verdadeira Vontade, ou seja, a inclinação do seu eu em direção ao seu “Eu Superior” e conseqüentemente o cumprimento da sua “Missão na Terra”. Porém, para não haverem choques com as intenções de outras pessoas, durante o período em que ainda não se descobriu a Verdadeira Vontade e por tanto, se é incapaz de estabelecer uma Ética, é necessário que haja o estabelecimento de uma estratégia, que evite os confrontos desnecessários. Uma exemplar estratégia foi realizada por R. Descartes, quando procedia a famosa desconstrução de seu pensamento, procurando seu referencial essencial. Para evitar que se perdesse em atitudes que levassem a erros irreversíveis, causados pela ausência de referenciais para julgamento, estabeleceu uma “moral provisória”. A moral provisória de Descartes foi baseada em algumas leis do estado francês e por alguns princípios cristãos. O mesmo acontece com a trilha thelêmica, onde o anseio juvenil se presta a derrubar a acomodação da tradição, permitindo o início da jornada em direção ao “Si Mesmo”, mas a maturidade de uma Egrégora, fornece o equilíbrio essencial para chegarmos ao objetivo final.

Então podemos concluir que não existe uma Ética social ou seja, igual para todas as sociedades, já que não existe uma Ética igual para dois homens, pois as Verdadeiras Vontades são individuais e idêntica situação ocorre com a Ética. Porém uma moral provisória, estabelecida para um grupo thelêmico, é coerente e essencial, pois no início do caminho thelêmico, por não haver a sintonia com a Verdadeira Vontade, existe a impossibilidade do estabelecimento de uma Ética e qualquer movimentação do Aspirante se baseando em uma interpretação falha da filosofia thelêmica, será inócua, se não perigosa.

Porém, para não cristalizar toda e qualquer movimentação original do Ser ao momento em que ele encontrará a sua Verdadeira Vontade, é reconhecida a constante aproximação do “Buscador” com a mesma, o que permite uma permanente adaptação de sua moral provisória16, às novas conquistas de consciência, permitindo com isso, uma aproximação gradual de sua Ética.

Então assim é permitida uma nova luz sobre as questões que se referem a Ética e a moral e principalmente em suas referência a filosofia thelêmica, possibilitando com isso, que se norteiem atitudes que visem facilitar a preparação do Aspirante às práticas thelêmicas.

O estabelecimento de Estatutos, Programas de Desenvolvimento e Estudo, Regras e Padrões, não são de forma alguma contraditórios com a filosofia thelêmica, são simplesmente o estabelecimento e formalização de uma instituição essencial para o bom andamento daquele que busca sinceramente o seu Interior, seu Self, sua Verdadeira Vontade, sem que o mesmo se prejudique por uma formulação precipitada dos fundamentos thelêmicos, causada pela falta de maturidade nesses caminhos, que se apresentam tão novos, para uma sociedade tão acostumada com as regras de uma era passada.

Notas:

  1. A grafia de Ética é feita em caixa alta, para enfatizar a sua característica atemporal e nobre, desenvolvida para o Homem Superior, diferenciando da forma inepta da utilização da mesma palavra, o que atualmente é realizada sem o sentido amplo e fundamentado.
  2. A grafia da palavra moral é realizada com caixa baixa, destacando a sua essência puramente temporal.
  3. O Ser Humano aqui se refere à essência do homem, o que caracteriza o homem como tal.
  4. Análise, como método filosófico de decomposição do todo, observação das partes, partindo dos efeitos para se chegar às causas. Observa-se que esse é um método que inviabiliza a visão do Todo, pois se sabe que o Todo não é resultante da soma das partes, é algo maior.
  5. Alma do grego Psyché.
  6. Sócrates não deixou nenhum escrito, mas conhecemos o pensamento desse, através de escritos de seus discípulos e contemporâneos, como: Platão, Xenofontes e Aristófanes.
  7. Os Pitagóricos, discípulos de Pitágoras, eram conhecidos entre as massas, através do seu comportamento. Foi famosa essa característica, onde se comentava entre os gregos: “aí passa um Pitagórico”.
  8. O Ser Humano aqui se refere à essência do homem, o que caracteriza o homem como tal.
  9. Para facilitar a compreensão desse período, vamos demonstrar de forma mais objetiva esse avanço de idéias: a Essência do homem é a sua Alma, então a Alma é pertencente somente ao homem (Alma como a união do trio: Emoções, Mente concreta e Mente superior, que liga o homem ao Espírito). Sabe-se também que a Virtude, leva o homem a Ser o que se é, e como a limitação do homem está na Ética, conclui-se que a Ética é eminentemente humana.
  10. Sabedoria é dirigir a vida através da deliberação do que é bem e mal para o homem. Aplicação do Discernimento.
    Sapiência é o conhecimento do bem e do mal. Discernimento.
  11. Cidade
  12. Ética, do grego Ethos, se referindo ao comportamento. Referência ao Indivíduo.
  13. Política, do radical Polis, grego, cidade.
  14. Retomando a concepção Septenária da formação do Homem.
  15. A Moral Provisória é estabelecida pela Ordem ou grupo ao qual pertence o Aspirante ao caminho thelêmico. É comum a rebeldia do aspirante a esse caminho, se dizendo não pertencer a qualquer grupo, porém é uma infantilidade e inconsciência essa atitude, pois se o mesmo não pertencer a algum grupo estabelecido, estará inevitavelmente sob atuação do grupo social ao qual pertence, tendo que se comportar segundo as leis do país e estado ao qual mora e às convenções sociais em que está inserido.

Autor: Frater Leviathan

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